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Fundo psicodélico
Fundo psicodélico

Manifesto Psicodelia Baixo Astral


Os psicodélicos estão no hype. Sustentando esse hype estão narrativas limpas e alto astral, que colocam em moléculas, nas substâncias isoladas, a responsabilidade pela revolução na saúde mental. Pesquisas científicas, das mais diversas áreas do conhecimento, e grupos religiosos, falam dos psicodélicos como panaceias, como o caminho para o encontro com o divino, a ponte para uma maior conexão da humanidade com a natureza, com os saberes de povos originários de diferentes territórios.


Mas que revolução é essa? Que divino é esse? E como são essas conexões?
Somos o Psicodelia Baixo Astral e nosso manifesto quer sujar, escurecer e transviadecer a psicodelia. Nascemos da dificuldade de falar abertamente sobre como o campo psicodélico reproduz violências como o racismo, o etnocídio, a transfobia, a homofobia e a misoginia. Nos juntamos porque não temos energia leve, porque nossos corpos impedem que tenhamos experiências alto astral no campo psicodélico e sejamos tão leves e de boa como toda “galera”.


Nos reunimos porque nosso problema não é a incapacidade de viver o potencial revolucionário dos psicodélicos ou de sentirmos prazer, mas porque as narrativas heroicas, divinas, criativas, prazerosas e terapêuticas sobre substâncias, plantas e medicinas indígenas, têm servido somente para corpos brancos, cisgêneros, heterossexuais e de classes privilegiadas. Espaços que não atuam, diretamente, na visibilização e no desmantelamento das violências do capitalismo-colonial, serão sempre excludentes.


Queremos que o Baixo Astral seja uma linha de reflexão crítica e política sobre um campo tão importante no debate de saúde mental, epistemologia e valorização da cultura dos povos originários, queremos que baixemos o astral para sermos críticos e a favor da razão e do enfrentamento das misérias e violências tão consolidadas em nosso mais íntimo.

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A revolução que não pertencemos
Recusamos toda universalização do conhecimento baseadas nos pressupostos da neutralidade ou na fixação da cisão entre corpo, mente, cultura, política e sociedade.


Reivindicamos como ofensivas todas as tentativas de sacralização da ciência, que a colocam como superior a tantas existências, saberes e ciências humanas e não humanas de nosso planeta. Reivindicamos como genocida toda a exploração de territórios originários, quilombolas e de demais comunidades tradicionais. Recusamos veementemente quaisquer apropriações dos conhecimentos indígenas e afro-diaspóricos, que não se proponham e atuem na reparação das violências coloniais sobre esses povos e comunidades.


Consideramos indecentes a apropriação das medicinas indígenas que desconsiderem que elas são, antes de tudo, patrimônio desses povos.


Acompanhamos os encaminhamentos propostos pelas Conferências Indígenas da Ayahuasca, e apoiamos a necessidade do protagonismo indígena no debate sobre suas medicinas. Respondemos ao chamado da Carta da IV Conferência Indígena da Ayahuasca para combater a desinformação, a falta de consciência nas instituições, a apropriação cultural e o uso inadequado de medicinas indígenas. Neste manifesto, ecoamos também seus apontamentos sobre a defesa e a demarcação de territórios originários, a justiça climática, o fortalecimento da juventude e dos anciãos, o combate à violência contra mulheres, soberania alimentar, e mais.


Consideramos toda demarcação de territórios como um horizonte fundamental para o campo psicodélico. Tanto a demarcação dos territórios indígenas, como a demarcação e delimitação do poder dos Cientistas sobre seus saberes, conhecimentos, plantas e fungos. É necessário tirar o véu da neutralidade falida e evidenciar as intenções e tensões do campo. Consideramos isso fundamental para um futuro ancestral de fato. Considerando território também como o campo onde a atuação deve se expandir. O território é o corpo na trincheira, são os mocós, as vielas, a mente, as relações e encruzilhadas, como diz Raona Martins.


Recusamos todos os saberes científicos que se propõem como universais. Lembramos que a ciência, que se diz universal, objetiva e baseada em evidências, é um projeto colonial. Ela foi construída a partir de corpos e existências brancas, cisgêneras, heterossexuais e predominantemente masculinas para, historicamente, servir ao silenciamento, à marginalização, à patologização, à exclusão e à morte de corpos e ciências negras, indígenas, de mulheres, trans, bichas, bissexuais e sapatonas...Assim como Paul Preciado sugere sobre o combate ao ego necropolítico da branquitude dentro das ciências humanas. Afirmamos que a política de extermínio começa no pensamento ocidental, branco e cisgênero, que diferencia cidadãos de marginalizados, corpos saudáveis dos corpos abomináveis, e as pessoas do bem daquelas de energia pesada e baixo astral.
Assim, consideramos nefastos e letais todos os saberes científicos que não racializam suas perspectivas, e se recusam a posicionar a branquitude e a cisheteronorma em seus estudos, promovendo a necropolítica, tal qual o conceito proposto por Achille Mbembe, ignorando a morte em nome da expansão dos territórios coloniais do saber. Repudiamos qualquer ciência ou atuação psicodélica que ignore como, em 2024, ela é majoritariamente composta e pensada por homens brancos, heterossexuais e cisgêneros, e como isso reflete em interesses, epistemologias e na reprodução de violências.


Améfrica Ladina, assim como delimita Lélia Gonzales, é território de conflito e resistência, ignorar o impacto do racismo e do colonialismo é herança eugenista, a qual recusamos com todas as nossas vísceras. 
Reivindicamos como nefastas, racistas e prejudiciais as teorias e pensamentos que se recusam a compreender a micropolítica e o racismo que estrutura a guerra às drogas. Consideramos indecentes propostas que se dizem antiproibicionistas, mas que não enfrentam o racismo e a colonialidade nas suas construções epistêmicas, e nas ações políticas e de cuidado.


Compreendemos que são discursos de ódio quaisquer narrativas que se baseiam nas farsas de um gênero natural, biológico, normal e que alimenta a heterossexualidade compulsória. Movimentos conhecidos como sagrado feminino e sagrado masculino, ao se sustentarem na matriz cisheteronormativa, têm sustentado a transfobia e a homofobia. São violências quaisquer práticas que sustentem processos de "cura" de pessoas homoafetivas, biafetisvas e trans, seja explicitamente, seja através de práticas espirituais que se sustentem na família nuclear, cisheterossexual, patriarcal e monogâmica como base única de afetos e de existência.


Rejeitamos todo renascimento psicodélico que se alimente da necropolítica, do silêncio e do epistemicídio. Demarcarmos como fundamental escurecer e transviadecer os horizontes políticos da ciência. Refutamos teorias que propagam confusão epistêmica, que não apontem problemas sociais reais baseados num Brasil situado culturalmente, racialmente e politicamente.
 

Reivindicamos uma ciência alinhada aos princípios do SUS e da Redução de Danos. Reivindicamos uma ciência baseada no fato de que o sofrimento também é social e fruto das desigualdades existentes nos territórios.
 

Quadro de desvalores:
Determinamos como nojentas as práticas de abuso que têm se manifestado em torno do uso de psicodélicos e de medicinas indígenas. Abusos de diversos tipos (sexual, patrimonial, religioso, de poder…) em contextos de uso espirituais, terapêuticos e de pesquisa clínica com psicodélicos e com medicinas indígenas.


Afirmamos que abusos não são cometidos por pessoas extraordinariamente abomináveis, mas são produtos de como nossa sociedade capitalista-colonial, misógina, racista, homofóbica e transfóbica se organiza e sustenta as relações de poder no campo e a redes de proteção aos abusadores. Apoiamos coletivos e redes que atuem na denúncia e acolhimento de vítimas desses abusos.


Denunciamos a revolução psicodélica que não olha para reprodução de abusos e violências. Consideramos seu CISlêncio como uma cortina de fumaça para a manutenção de um mundo nefasto e desigual. Gritamos contra o CISlêncio imposto pelo Alto Astral e decretamos todo silêncio como um ato de crueldade e perpetuação do poder.
Afirmamos a necessidade de promover uma discussão pública ampla sobre psicodélicos, onde pessoas e instituições apresentem de forma transparente seus conflitos de interesses e premissas epistêmicas (e de seus patrocinadores, formas de financiamento e eventuais bilionários de maior afeição), na intenção de mapear os avanços que são apenas em nome do lucro. 


Estabelecemos como nojento e iníquo todo refluxo do reducionismo biológico imposto pelo paradigma biotecnocientífico/biomédico e suas estruturas de poder. Afirmamos como abominável todo discurso científico que busca naturalizar as violências sociais, o patriarcado, as violências de raça, gênero e classe, assim como ignorar a perseguição e extermínio do povo negro e indigena na guerras às drogas. 


Se por um lado o discurso acadêmico do “renascimento psicodélico” conclama para si a possibilidade de transformar vidas, a sociedade e o ambiente, por outro ele se comporta pelo desinteresse na escuta das demandas e necessidades da diversidade de pessoas as quais promete alcançar e transformar. Demarcamos assim a necessidade de criação e manutenção de espaços permanentes de controle social das práticas científicas, guiados pela cidadania e dignidade das populações envolvidas, onde as críticas, e o apontamento da não objetividade e da não neutralidade da ciência biomédica, não sejam CISlenciadas através de discursos de valor, de rótulos de anti-ciência, ideologia, opinião, energia pesada, e afins.


Queremos olhar também para os discursos trazidos a partir de um tal de renascimento psicodélico. Consideramos também obscenas as narrativas construídas sobre o campo do psicodélico, que ignora os interesses nefastos e capitalistas de bilionários e indústrias farmacêuticas. Não é possível que a comunicação psicodélica, onde estão jornalistas, podcasters, digitais influencers entre outros, tenham liberdade de atuar de forma alienada e alienante, produzindo narrativas únicas que alimentam a guerra às drogas e a grande mentira sobre drogas boas e drogas más. Desejamos um campo onde a comunicação não seja instrumento da colonização do pensamento e nem campo de expansão neoliberal.


A promessa da cura de doenças mentais e sofrimentos psicológicos através de uma única substância não é novidade na psiquiatria, muito menos discursos de valorização de medicinas de outras culturas com aplicações anacrônicas que desconsideram e desterritorializam seus conhecimentos. Entendemos como vulgar a compreensão de saúde mental que não compreenda os impactos das violências dentro da família, do capitalismo, das práticas indecentes de seleção do mercado de trabalho e da guerra às drogas.


A saúde deve ser compreendida na sua dimensão social e política. Questionamos todas as práticas de saúde que não olham para a construção do sujeito e da sociedade que o constroi. Assim também compreendemos que a medicalização compulsória também é herança manicomial, os sujeitos precisam ter acompanhamento de cuidado baseado nos princípios da redução de danos.


O Sistema Único de Saúde (SUS) é um patrimônio popular brasileiro que deve ser defendido e expandido no lugar de ser sucateado e abandonado. A redução de danos é um dos pilares fundamentais dos anos 80 e 90 que transformaram a saúde coletiva, a atenção básica e o cuidado permanente de pessoas vivendo com HIV/AIDS. Assim então designamos como repugnante toda ciência que não se baseie nos seus princípios.


O SUS do Brasil tem princípios fundamentais, que são essenciais para a sua estrutura e funcionamento. Demarcamos esses princípios como o pilar de uma saúde que se importa com a realidade social e política brasileira:
Universalidade: Todos os cidadãos têm direito ao acesso gratuito a serviços de saúde, sem qualquer discriminação.
Integralidade: O SUS deve oferecer atendimento integral, contemplando ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação em saúde.
Equidade: A oferta de serviços de saúde deve ser justa e proporcional às necessidades de cada indivíduo ou grupo, buscando reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Descentralização: A gestão do SUS deve ser descentralizada, com a participação de estados e municípios, promovendo a regionalização e a hierarquização dos serviços.
Participação Social: A população deve participar da formulação, gestão e controle das políticas públicas de saúde, através de conselhos e conferências de saúde.
Regionalização e Hierarquização: Os serviços de saúde devem ser organizados em níveis de complexidade crescente, de forma hierarquizada, e distribuídos regionalmente para garantir um melhor atendimento.
Resolubilidade: Os serviços de saúde devem ser capazes de resolver a maioria dos problemas de saúde da população, garantindo eficiência e eficácia.


Definimos esses princípios como fundamentais no debate da expansão da saúde psicodélica ou de medicinas da floresta dentro do SUS, sempre em diálogo com os detentores desses conhecimentos como protagonistas, recusando toda instrumentalização da ideia de uma saúde pública, que no fundo continue escondendo em suas práticas higienistas, interesses neoliberais e de biopirataria.

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Inconclusões e desencaminhamentos
Inconcluindo nosso Manifesto Baixo Astral, descartamos respostas finais e soluções mágicas para que ele permaneça vivo e em constante transmutação.

 

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